Daquele dia de chuva

Mesmo sem saber se vai utilizá-lo, todos os dias pela manhã, ela o enfia em sua bolsa, junto com as outras bagunças do dia anterior. É a imprevisibilidade do mundo que faz com que ela carregue o objeto cilíndrico, não muito prático e que, de certa maneira, intensifica o peso da mochila ou da bolsa que, por sua vez, já lhe causaram dores no ombro direito. Leva-o sempre porque detesta ficar na mão. Não gosta de depender dos outros e odeia ter de esperar para sair dos lugares. Talvez seja por isso que determinados dias chuvosos a deixam de mau humor, ainda mais quando ela se esquece de pegar seu guarda-chuva.

Gosta de utilizar o mesmo guarda-chuva por semanas, ou, se possível, por meses, daqueles bem baratos, geralmente vendidos nas saídas dos metrôs, salvando as pessoas do desespero de se molharem. Ela já fez o teste e determinou que a vida útil desses objetos não é lá muito duradoura. Então decidiu que nunca mais iria comprar guarda-chuvas caros, grandes, coloridos e estilosos. Primeiro, porque eles estragam, de qualquer maneira. Segundo, porque ela sempre deixa para trás os guarda-chuvas maiores, percebendo que precisa mesmo de um desses vagabundos, que cabem dentro da bolsa e são à prova de esquecimento. E, terceiro, porque ela prefere cores neutras, nada de muito espalhafatoso, combinando com seu humor de dias de chuva.

Mas existe um carinho peculiar por este guarda-chuva que ela carrega consigo há alguns meses, apesar de ele não ter nada de diferente dos outros, pelo menos em sua parte física. Continua sendo preto, barato, com ferrugens visíveis em sua parte de baixo, difícil de abrir e já com algumas perigosas pontas espetadas. Não serve para quase nada, assim como os outros. Deixa a água escorrer pelas costas, molhando mochilas, não é largo o suficiente para proteger os braços, e, por algum motivo, deixa os pés sempre ensopados. Ainda assim, deste ela gosta e aprecia mais.

Foi esse guarda-chuvinha de nada que fez com que houvesse o primeiro contato do corpo dele contra o corpo dela, deixando-os bem próximos, em um abraço desajeitado, mas apertado, ainda que estivessem com todas aquelas blusas pesadas de frio. Andaram dessa maneira por algumas quadras, aos tropeços, grudados um no outro, gargalhando, rindo ao vento, e é claro que muito molhados. Ambos sabiam que o guarda-chuva de cor escura dela era pequeno para os dois, e que de nada adiantaria para protegê-los da chuva. Mas, naquele momento, nada disso era relevante.

Levando pingos grossos de água na cara, piscando, enxergando mal, e irritada por não conseguir abrir o guarda-chuva logo, que sempre enrosca ou se abre de súbito, quando ela encara as ferrugens da parte de ferro da sua sombrinha, ironicamente sua impaciência vai embora. Pisca apaixonada e se lembra dele. A parte enferrujada provavelmente é resultado do momento em que ela, com pressa, fechou o guarda-chuva já muito molhado e o enfiou na bolsa, de qualquer jeito, sem pensar que estava encharcando todos os objetos lá dentro, inclusive as outras bagunças do dia anterior, e respondeu para ele, sorrindo e ofegando, um deslumbrado “sim”.

Daquele dia de chuva

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